Diz-se que justiça tardia é injustiça! Porém, não se pode esquecer que justiça mal feita também o é! Tracemos um paralelo.
O médico-cirurgião não pode errar. Se o fizer, o paciente morre. Ou seja, há de ser exímio no que faz. Ai deste se aquele, por exemplo, porque tenha outras cirurgias a fazer, se precipitar no manejo do bisturi.
Com o juiz é quase a mesma coisa. Ai do direito das partes se, em nome da correria (a chamada produtividade), deixar de lado a indispensável leitura dos autos e o cuidado na precisa aplicação do Direito. Para a Justiça, será a morte.
Mais que noutro tempo qualquer, virou moda dizer que bom juiz é aquele que muito produz. Todavia, cabe se investigue daquilo que se está a produzir. Noutras palavras, da qualidade do trabalho prestado, sob pena de se dizimar a justiça do caso concreto, em prejuízo da pacificação social.
Atualmente, sob o influxo político de Brasília e a visão demagógica de muitos, os tribunais têm buscado dar vazão ao enorme número de processos esperando julgamento, objetivando, quanto mais possível o seja, o máximo de produtividade. Ou seja, a rápida decisão de recursos.
Embora a boa intenção, tem-se esquecido que, por trás dos autos de processo, existem seres humanos – os juízes e quem, eventualmente, os auxilie. A par disso, há o fato, proeminente, de que a Justiça, qual a medicina, no trato daquilo que lhe condiz, não dispensa apurado e acurado esmero.
Na medida em que se aumenta a pressão sobre a pessoa do juiz, no sentido de que, a todo custo, julgue o mais rapidamente e o maior número de recursos possível, muitas vezes dentro dum contexto do quase impossível – repita-se, pois que se está a tratar de ser humano –, uma das pontas do ato de fazer justiça fica desguarnecida; justamente, pelo risco virtual de julgamentos inadequados, rápidos quão injustos.
De fato, ao magistrado não se pode considerar um número, à distância da boa prestação jurisdicional. E nem se diga que se lhe faz possível julgar muito e bem, sempre.
O juiz não é uma máquina. Como o cirurgião, necessita bem capacitar e aparelhar o bisturi da correta aplicação do Direito na detida análise dos casos, inda que prolíferos. Do contrário, em nome do muito julgar, mais periclitará o imperativo inarredável de bem julgar.
Nem todo aquele que produz muito é bom – depende do fruto dessa produção. Não obstante isso, o modismo atual sedimentou a noção de que fazer justiça coincide com muito produzir. Trocando em miúdos, vale a estatística; mais, até, aparentemente, que a vocação de ser justo – a espantar (este o termo) muitos bons magistrados, cônscios de sua missão de fautores do verdadeiro Direito.
Grave engano, logo perceptível por quem vitimado pelo “bisturi” dum juiz “rápido no gatilho”, mas vazio do senso de justiça. Note-se: tudo em nome, muitas vezes, do atendimento às pressões externas, tendentes a impor a idéia distorcida de que basta o muito decidir.
Aliás, esta parece ser a decisão política a respeito; no mais das vezes, haurida da ficção de que, neste País continental, se podem igualar situações tão desiguais.
Sejamos mais objetivos. Existem muitos brasis neste Brasil. Exemplificando, no âmbito da Justiça, o Estado de São Paulo não tem par. Seu gigantismo fala por si, comparativamente a outros Estados, que, no campo da sobrecarga de trabalho, em nada se lhe equiparam.
Assim, uma coisa é ser juiz naquele Estado; outra, nos demais. A visão da problemática da dinâmica de trabalho há de variar, pois, pontualmente, segundo os característicos e peculiaridades de cada qual. No mesmo passo, a análise e o enquadramento das possíveis soluções, sem o inconveniente da chamada “vala comum”.
O próprio sentido de isonomia traduz a arte de se tratar desigualmente os desiguais. Ora, na medida em que se igualam situações dessemelhantes, incorre-se em injustiça – sobretudo, à população que se sirva dum Judiciário desviado da função precípua de bem julgar, conquanto atrelado à missão política de julgar muito (custe o que custar).
Tudo isso, além da capacidade individual – quão desigual – de cada juiz. Há os que julgam muito e bem; há os que, julgando muito bem, produzem menos e há aqueles que, por terem de produzir muito, acabam julgando mal. Aqui, o risco maior da “morte do Direito”. Pior, do sentido de pacificação social pela arte de dar a cada um o merecido.
Sou juiz, há vinte e oito anos. Sei do que digo, pois. Enquanto substituto em 2º grau, no Tribunal de Justiça de São Paulo, o melhor que pude, enfrentei a pressão de milhares de processos pendentes de julgamento. Então, por mais que trabalhasse (de dez a doze horas diárias, sem exclusão de finais de semana e feriados – quem me conhece sabe disto), “enxugava gelo”. Abati-me pela sensação incômoda da impotência, a par da enorme vontade e disposição de mais e melhor produzir – a ponto de adoecer.
Hoje, desembargador, com a experiência adquirida nos tempos idos, sem medo de errar, posso e devo dizer que mais vale uma boa decisão que dez ruins; mais vale uma cirurgia exitosa que a morte do paciente.
Portanto, que se não confunda o juiz comprometido com a causa do Direito com aquele que se limita a prestar serviço no compasso da decisão irrefletida, ao largo da finalidade precípua da Justiça – dizer bem o Direito.